Em decisão inédita foi reconhecido, no
âmbito no direito interno, a validade e possibilidade de homologação de casamento
entre parceiros homoafetivos celebrado em território estrangeiro.
A decisão, proferida pelo Dr. Luís Antônio de Abreu Johnson, utilizou como
razões de decidir a INTEGRALIDADE do parecer firmado pela Promotora de Justiça Dr. Velocy Melo Pivatto.
Diante da relevância do assunto divulgamos o parecer
ministerial e a sentença prolatada.
PARECER DO MP
RD.00803.00355/2011
Origem:
Ofício do Registro das Pessoas Naturais de Lajeado
Objeto:
Traslado de Documento Estrangeiro
Requerente:
E. A. F. S.
PARECER DO MINISTÉRIO
PÚBLICO
Sr. Registrador:
I – RELATÓRIO
Trata-se
de pedido de traslado de documento estrangeiro formulado por E. A. F. S.
Postula
o requerente o reconhecimento da união civil havida com P. J. A., britânico, a
qual foi celebrada em Bristol, Inglaterra, e legalizada no Consulado do Brasil em Londres. Assevera
que o consorte passará a se chamar “P. J. A. S.” e o regime adotado será o da
comunhão parcial de bens.
Junto
com o requerimento, foram colacionados os seguintes documentos:
·
Cópia da carteira de identidade do requerente (fl. 03);
·
Cópia autenticada da certidão do ato realizado no
estrangeiro, com reconhecimento consular (fl. 04);
·
Cópia autenticada da tradução do documento anteriormente
referido por profissional juramentado (fls. 05/06);
·
Comprovantes de que o requerente passou a residir no
Brasil(fls. 07/11);
·
Cópia autentica do cartão de CPF do consorte (fl. 12);
É
breve o relato.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Para
análise do pedido, mister que seja este observado dentro de dois planos:
primeiramente, o formal, do ponto de vista do respeito às exigências burocráticas
previstas em lei; secundariamente, a matéria posta em debate, isto é, o objeto
do ato a ser reconhecido.
a) Aspectos formais
As
formalidades exigidas para o reconhecimento da união matrimonial celebrada no
estrangeiro são aquelas disciplinadas no art. 1.544 do Código Civil, assim
transcrito in verbis:
CC - Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir.
Compulsando
a documentação acostada, verifica-se que o requerente atende a todos os
requisitos supra citados. O casamento
foi celebrado perante as autoridades britânicas, posteriormente referendado
pela entidade consular brasileira (fl. 04). A tempestividade do pleito também
foi respeitada, porquanto os consortes aportaram em território nacional no dia
15 de agosto de 2011 (fls. 09/11), ingressando com o pedido em 28 de setembro
do mesmo ano (fl. 02), ou seja, antes de que fossem expirados os 180 dias a que
se refere o dispositivo legal. A competência territorial, por fim, evidencia-se
pelo documento de fl. 08, o qual aponta que o domicílio do requerente é na
cidade de Lajeado.
Desta
forma, inexistem irregularidades formais na postulação realizada.
b) Aspectos materiais
O
horizonte material do pedido, como antes já mencionado, relaciona-se com o
objeto do ato civil a ser reconhecido no território nacional, isto é, do
casamento realizado pelo requerente em solo estrangeiro. Com efeito, uma
simples análise do pedido demonstra que não se trata de mero caso rotineiro,
mas de circunstância especial que cada vez mais vem ao encontro do Poder
Judiciário, das funções essenciais à Justiça e da própria sociedade como um
todo: a união civil de casal de idêntico sexo.
Precipuamente,
antes de dar continuidade ao debate, mister que seja esclarecido que, muito
embora o documento de fl. 04 faça referência à união civil (civil partnership), sem utilizar a
expressão casamento (merriage), deve
ser reconhecida a equivalência dos institutos para fins registrais no Brasil.
Isso porque no Reino Unido, Estado no qual foi celebrado o ato, não há
diferença, em perspectivas jurídicas, entre o casamento e a união civil. A
única razão pelo não emprego naquele Estado do mesmo termo é que foi dada a
nomenclatura de “união civil” para o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo
para não haver impasses religiosos, posto que somente casais heterossexuais
podem confirmá-lo frente à autoridade eclesiástica. Interessante matéria
veiculada no site SairdoBrasil.com
explica, de forma clara, essa diferenciação:
Casais homossexuais podem registrar oficialmente
sua relação. A união civil no Reino Unido é praticamente como um casamento,
a denominação só é diferente porque se trata da união entre pessoas do mesmo
sexo. A única diferença é que no casamento é possível ter uma cerimônia
religiosa, enquanto na parceria civil somente será possível o registro no
cartório, mas os direitos e obrigações são os mesmos. Entre os direitos e
obrigações que terão os parceiros, destacam-se: a obrigação de manter razoáveis
condições de moradia ao parceiro e aos filhos; direito a indenizações em caso
de morte do parceiro, proteção contra violência doméstica, direito de pleitear
pela divisão de bens se a relação for dissolvida e o direito de requerer visto
como dependente no Reino Unido.[1]
(grifei)
Assim,
ao contrário do Brasil, em que normalmente se emprega o termo “união civil”
apenas para as “uniões estáveis”, as quais possuem tratamento legal um pouco
diferenciado do casamento, não há divergência jurídica com o regime
matrimonial. O ato, portanto, a ser reconhecido neste território soberano, é o
casamento do requerente, cujo debate é imperioso de ser feito através de uma
abordagem não exclusivamente jurídica, mas também social, psicológica e
histórica.
A
família não é apenas um instituto social, mas também jurídico, tanto que tem
proteção especial iniciada com a Carta Magna e decorrente na legislação
infraconstitucional. Em análise do ordenamento jurídico, extrai-se que tanto o
constituinte como o legislador ordinário buscaram dar guarida à entidade
familiar através da formação de um escudo dos laços de afetividade, elos que
geram, assim, consequentes direitos e deveres entre os integrantes da célula
social.
A
partir desse pressuposto, demonstra-se que o Direito de Família, ao contrário
dos demais ramos do direito civil, ultrapassa o tratamento patrimonial,
porquanto blinda os vínculos familiares, no intuito de respeitar o preceito
constitucional máximo que irradia todos os demais direitos fundamentais do
indivíduo: a dignidade da pessoa humana. Portanto, o enfoque da proteção
constitucional e legal tem como base a relação pessoal, sentimental,
psicológica, social e afetiva, muito além da tradicional relação puramente
biológica antes preservada nas Leis Fundamentais e legislações
infraconstitucionais anteriores. Com o advento do recente Código Civil, em
2002, essa nova visão de família foi apenas ratificada e ampliada.
A
concepção de família unida pelo afeto permitiu o reconhecimento dessas diversas
novas famílias que hoje circulam na contemporaneidade: uniões estáveis, monoparentais,
avoengas e – como no caso em tela – as construídas a partir de casais
homossexuais, hoje definidas pela doutrina e jurisprudência como homoafetivas,
termo cunhado e defendido por Maria Berenice Dias, expoente notável na
literatura e na produção jurisdicional quando desenvolvia a atividade da magistratura
junto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Com
efeito, nota-se que, ao contrário das famílias anteriormente referidas, o
legislador não cuidou em dar tratamento especial às relações homoafetivas.
Tanto a Constituição Federal quanto o Código Civil hodierno expõem em seus
textos as alcunhas de “homem e mulher” quando abordam o casamento e a união
estável. Muito embora haja textualmente uma diferenciação, tal fato não implica
a atribuição de direitos aos casais homoafetivos, eis que o ordenamento
jurídico não é apenas cunhado por letras, mas sobretudo por normas
principiológicas e fatores sociais, o que exige do intérprete da lei não uma
abordagem literal, mas também uma leitura teleológica e de acordo com todos os
preceitos relacionados à dignidade.
Seguindo
a linha de se falar em dignidade, mister que seja compreendido o conceito
histórico da Constituição Federal. A atual Carta Magna é fruto de processo
social objetivando a isonomia de direito, em um combate com as diversos
panoramas discriminatórios havidos nos anos deste país. Vale lembrar que a
história brasileira é marcada por casos de opressão de minorias étnicas,
escravidão de povos, marginalização de casais formados em casamentos que à
época eram indissolúveis, destrato em relação a filhos adotados ou tidos fora
do matrimônio, a ineficiência da tutela jurisdicional no combate a violência
doméstica.
José
Reinaldo de Lima Lopes leciona que a dinâmica do Direito é, sobretudo, um
combate à estigmatização desses grupos, exemplificando as vitórias do movimento
feminista:
Várias formas de
estigmatização já foram eficazmente combatidas pelo direito. Para citar poucos
exemplos, pode-se dizer que os grupos de identidade que se formaram ao longo dos
últimos séculos e conseguiram superar os estigmas sociais por meios jurídicos
foram as mulheres e, em parte, os negros, estrangeiros e os deficientes
físicos. Do ponto de vista da cultura majoritária, as formas de interiorização
desses eram respaldadas pelo direito. As mulheres não votavam, podiam receber
salários inferiores aos dos homens, em certas circunstâncias não tinham acesso
ao Judiciário sem autorização do marido e assim por diante. Foram movimentos
emancipacionistas e feministas que construíram pouco a pouco uma imagem mais
positiva e afirmativa das mulheres, “desnaturalizado” o tratamento jurídico
diferenciado, e que introduziram no direito à igualação de mulheres e homens,
que antes se concebia como impossível, dada a diferença do gênero. A diferença
é, pois, um constructo histórico; e o direito não joga papel neutro nessa
construção: ao contrário, o direito – os ordenamentos jurídicos – ajuda a
naturalizar as diferenças e as desigualdades comuns na cultura. A mudança no
direito não apenas se segue às mudanças culturais, mas ajuda a promovê-las.[2]
(grifei)
Outrossim,
inegável não dizer que a inserção da terminologia exclusivamente heteroafetiva nos
textos legais e na própria Constituição é resultado de grupos conservadores, em
grande parte atrelados às instituições religiosas. Em que pese legítimo e livre
o exercício de suas convicções políticas e teológicas, respeito igual merece
ser dado àqueles que não compartilham com a mesma visão do mundo. Se há
liberdade de escolha de credo, idêntica liberdade é conferida à formação das
relações afetivas. Ademais, nossa atual forma de Estado preserva a laicidade,
separando-o de qualquer religião, ainda mais nesse país, em que há um
incontável número de crenças.
Os
mesmos motivos anteriormente delineados explicam o porquê da omissão
legislativa quanto às relações homoafetivas. A já mencionada Maria Berenice
Dias esclarece que isso não significa a omissão do direito, posto que o
reconhecimento dessas uniões é pautado nas três gerações de direitos fundamentais
descritos e implícitos na Carta Magna. Nas suas palavras:
Mesmo que o próprio
desdobramento dos direitos em um grande número de gerações possa ensejar algum
questionamento, não se pode deixar de reconhecer que a garantia do livre
exercício da sexualidade merece integrar as
três primeiras gerações, porque está relacionada com os postulados
fundamentais da liberdade individual, da igualdade social e da solidariedade
humana. Nesse campo, sobressaem as relações homossexuais, crivadas sob
preconceitos que tentam excluí-las do mundo do Direito. Mas, à intolerância
social, deve-se contrapor a higidez dos conceitos jurídicos. Além de estarem
amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a proibição
das discriminações injustas, imperiosa sua inclusão no rol de direitos humanos
fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao mesmo tempo individual,
categorial e difuso. Também se albergam as relações homossexuais sob o teto da
liberdade de expressão, como garantia do exercício da liberdade individual,
cabendo incluí-las, da mesma forma, entre os direitos de personalidade,
precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a integridade física e
psíquica. Acresce ainda visualizar a segurança da inviolabilidade da intimidade
e da vida privada, que é a base jurídica para a construção do direito à
orientação sexual, com direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da
pessoa humana.[3]
Diante disto, fica cristalino que o não reconhecimento desta união
obtida pelas partes em território estrangeiro estaria contrariando todos os
princípios estabelecidos em nosso país no que tange ao combate ao preconceito
diante da opção sexual adquirida por cada cidadão e, principalmente, a questão
das inúmeras agressões praticadas por pessoas, hoje identificadas como
“homofóbicas”. Reconhecer tal situação, trata-se de mero ato de formalizar o
que de fato já existe, pois o casal homoafetivo já vive e se comporta como duas
pessoas casadas, que além do afeto e da harmonia, acabam construindo um lar e
vivendo toda a rotina que um casal heteroafetivo vivencia, e muitas vezes
fazendo valer de forma mais significativa as questões que envolvem um casamento.
Ressalta-se que aqueles que optam pelas relações homoafetivas
possuem os mesmos deveres e obrigações de qualquer cidadão: pagam tributos,
prestam concurso público, são condenados ao cometerem algum ilícito penal,
votam obrigatoriamente em seus representantes políticos etc. Se esse grupo é
considerado cidadão para o cumprimento de obrigações, igualmente assim deve ser
considerado para o reconhecimento de seus direitos. Tal posicionamento fica
evidente quanto se leva em conta a questão previdenciária:
O mesmo ocorre em relação
ao princípio da solidariedade, porque ao trabalhador que contribui para a
construção de um sistema de seguridade observando o princípio de solidariedade
social previsto no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, é mais que
legítima sua expectativa de que, diante de adversidades, seja garantida a
manutenção de seu padrão de vida e das pessoas. Porque, se o princípio da
solidariedade dá a idéia de que todos têm direitos e deveres, para a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, significa que, se os companheiros
das relações homoafetivas têm os mesmos deveres com a Previdência Social, devem
também ter os mesmos direitos, independentemente da opção sexual, porque
atualmente muitos destes brasileiros estão tendo de recorrer ao judiciário para
terem seus direitos assegurados.[4]
Seguindo essa trilha de pensamento, duas importantes vitórias aos
casais homoafetivos foram alcançadas no âmbito do Poder Judiciário. A primeira,
e mais importante delas, refere-se ao julgamento de duas ações frente o Supremo
Tribunal Federal, a ADI nº 4.277 e a ADPF nº 132, contendas que acarretaram o
reconhecimento da união civil de pessoas do mesmos sexo. A segunda, por sua
vez, deu-se na seara do Superior Tribunal de Justiça, colegiado que considerou
como válido o casamento havido entre duas mulheres gaúchas. Estas decisões nada
podem ser consideradas como supressão da omissão legislativa – necessária para
dirimir qualquer dúvida quanto às relações homoafetivas –, mas a concretização
dos direitos de igualdade e liberdade já consagrados no texto constitucional.
Gabriela Soares Balestro diz que:
Assim, diante do
reconhecimento constitucional da homoafetividade pelo Supremo Tribunal Federal,
as relações homoafetivas foram inseridas no conceito de entidade familiar,
havendo, portanto, a possibilidade da conversão das uniões civis entre pessoas
do mesmo sexo em casamento, tendo em vista que, se os mesmos direitos civis e
efeitos patrimoniais e sucessórios que regulamentam as uniões estáveis
heteroafetivas, com o atual entendimento do STF, devem ser estendidos aos
casais homoafetivos, o casamento, sendo instituo de direito civil também é
juridicamente possível.[5]
E continua a
autora:
A lei deve ser
interpretada em uma perspectiva geral e adequada à Constituição Federal,
reconhecendo que o outro é portador dos mesmos direitos, tendo em vista que as
relações homoafetivas devem ter igual tratamento e proteção legal que as
relações heteroafetivas em prol do respeito ao princípio da igualdade e à
dignidade da pessoa humana, sendo o casamento um direito civil fundamental de
todo ser humano.[6]
É necessário perceber que o mundo está se desenvolvendo a cada
dia, inclusive nesta questão homoafetiva, pois é sabido que tais relações já
existem bem antes do que o senso comum imagina. Contudo, o preconceito também
acabou por acompanhar essas pessoas, as quais, antigamente, não possuíam
coragem de expor à sociedade sua opção sexual.
Assim, é preciso que essa discriminação, que há tantos anos está
presente na mente das muitas pessoas, seja definitivamente quebrada, a fim de
que todos tenham o direito de expressar suas opções sexuais, fazendo valer os
princípios e garantias da pessoa humana.
III – CONCLUSÃO
Diante do exposto, o Ministério
Público opina pelo DEFERIMENTO do
pedido, no fito de reconhecer, registralmente, o casamento havido entre o
requerente e P. J. A. S.
Lajeado/RS,
11 de novembro de 2011.
VELOCY MELO PIVATTO,
Promotora de Justiça
[1] DIAS, Tatiane. Como realizar um casamento homossexual no
Reino Unido. SairdoBrasil.com, 23 nov. 2009. Disponível em:
Acesso em: 04 nov. 2011.
[2] LOPES, José Reinaldo de
Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. In: GOLIN, Célio;
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; RIOS, Roger Raupp (ORG). Homossexuais e Direitos Sexuais: reflexões a partir da decisão do STF.
Porto Alegre: Sulinas, 2011, 31.
[3] DIAS, Maria Berenice.
União Homossexual: o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 63-64.
[4] KOLMANN, Rozeni. Relações
homoafetivas e previdência social: uma abordagem à luz de princípios
constitucionais. Monografia (Curso de Graduação em Direito). Centro
Universitário UNIVATES, Lajeado, 2006, p. 84-85.
[5] BALESTRO, Gabriela
Soares. O Casamento como um instituto de Direito Civil: a Homoafetividade. In: Revista Brasileiro de Direito das Sucessões,
Porto Alegre, n. 22, p. 30-31, jun/jul
2011.
[6] Ibidem, 40.
SENTENÇA
Comarca de
Lajeado
Vara DA DIREÇÃO DO FORO
Rua
Paulo Frederico Schumacher, 77, Moinhos
_________________________________________________________________________
RD
nº:
|
00802.00355/2011
|
Natureza:
|
Traslado de Documento Estrangeiro
|
Requerente:
|
E.A.F.S.
|
Origem:
|
Ofício do Registro das Pessoas
Naturais de Lajeado
|
Juiz
Prolator:
|
Juiz de Direito - Dr. Luís Antônio
de Abreu Johnson
|
Data:
|
31/05/2012
|
E.A.F.S. requereu ao Ofício do Registro das Pessoas
Naturais de Lajeado a adoção de providências no sentido de encaminhar o pedido
de traslado de sua certidão de registro de união civil mantida com P.J.A.,
lavrada em Bristol, na Inglaterra, e legalizada no Consulado do Brasil em
Londres.
Postulou houvesse manifestação no que tange ao nome que Peter passará a
usar, destacando que na Inglaterra ele já utiliza o nome de P.J.A.S., bem assim
explicitado o regime de bens a ser adotada, que pretendem seja o da comunhão
parcial de bens.
Aparelhou o requerimento com cópia de seu RG, cópia autenticada da
certidão do ato realizado no estrangeiro, com reconhecimento consular, cópia
autenticada da tradução do documento antes referido, elaborado por profissional
juramentado, comprovantes de que o requerente passou a residir no Brasil, cópia
autenticada do CPF e do passaporte de Peter.
O Ministério Público opinou pela procedência do pedido (fls. 15-20).
Às fls. 22-25 foi comandado o aporte aos autos de certidão de nascimento
atualizada do contraente brasileiro e declaração do regime de bens adotado, expedida
por Repartição Pública competente.
As exigências foram atendidas pelo requerente às fls. 26-28 e, na
sequência, vieram-me
os autos conclusos para sentença.
RELATEI.
PASSO A
FUNDAMENTAR.
Ab initio, adoto como razões de decidir os fundamentos expendidos no
douto e laborioso parecer da lavra da Eminente Promotora de Justiça, Dra.
Velocy Melo Pivatto. Primeiro, porque com ele concordo, às inteiras, e como
forma de evitar a repetição dos mesmos argumentos. Segundo, para homenagear a
Promotora de Justiça subscritora, que dignifica o Ministério Público do Rio
Grande do Sul:
“Para
análise do pedido, mister que seja este observado dentro de dois planos:
primeiramente, o formal, do ponto de vista do respeito às exigências
burocráticas previstas em lei; secundariamente, a matéria posta em debate, isto
é, o objeto do ato a ser reconhecido.
a) Aspectos formais
As
formalidades exigidas para o reconhecimento da união matrimonial celebrada no
estrangeiro são aquelas disciplinadas no art. 1.544 do Código Civil, assim
transcrito in verbis:
CC - Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir.
Compulsando
a documentação acostada, verifica-se que o requerente atende a todos os
requisitos supra citados. O casamento
foi celebrado perante as autoridades britânicas, posteriormente referendado
pela entidade consular brasileira (fl. 04). A tempestividade do pleito também
foi respeitada, porquanto os consortes aportaram em território nacional no dia
15 de agosto de 2011 (fls. 09/11), ingressando com o pedido em 28 de setembro
do mesmo ano (fl. 02), ou seja, antes de que fossem expirados os 180 dias a que
se refere o dispositivo legal. A competência territorial, por fim, evidencia-se
pelo documento de fl. 08, o qual aponta que o domicílio do requerente é na
cidade de Lajeado.
Desta
forma, inexistem irregularidades formais na postulação realizada.
b) Aspectos materiais
O
horizonte material do pedido, como antes já mencionado, relaciona-se com o
objeto do ato civil a ser reconhecido no território nacional, isto é, do
casamento realizado pelo requerente em solo estrangeiro. Com efeito, uma
simples análise do pedido demonstra que não se trata de mero caso rotineiro,
mas de circunstância especial que cada vez mais vem ao encontro do Poder
Judiciário, das funções essenciais à Justiça e da própria sociedade como um
todo: a união civil de casal de idêntico sexo.
Precipuamente,
antes de dar continuidade ao debate, mister que seja esclarecido que, muito
embora o documento de fl. 04 faça referência à união civil (civil partnership), sem utilizar a
expressão casamento (merriage), deve
ser reconhecida a equivalência dos institutos para fins registrais no Brasil.
Isso porque no Reino Unido, Estado no qual foi celebrado o ato, não há diferença,
em perspectivas jurídicas, entre o casamento e a união civil. A única razão
pelo não emprego naquele Estado do mesmo termo é que foi dada a nomenclatura de
“união civil” para o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo para não haver
impasses religiosos, posto que somente casais heterossexuais podem confirmá-lo
frente à autoridade eclesiástica. Interessante matéria veiculada no site SairdoBrasil.com explica, de forma
clara, essa diferenciação:
Casais homossexuais
podem registrar oficialmente sua relação. A união civil no Reino Unido é
praticamente como um casamento, a denominação só é diferente porque se trata da
união entre pessoas do mesmo sexo. A única diferença é que no casamento é
possível ter uma cerimônia religiosa, enquanto na parceria civil somente será
possível o registro no cartório, mas os direitos e obrigações são os mesmos.
Entre os direitos e obrigações que terão os parceiros, destacam-se: a obrigação
de manter razoáveis condições de moradia ao parceiro e aos filhos; direito a
indenizações em caso de morte do parceiro, proteção contra violência doméstica,
direito de pleitear pela divisão de bens se a relação for dissolvida e o
direito de requerer visto como dependente no Reino Unido.[1]
(grifei)
Assim,
ao contrário do Brasil, em que normalmente se emprega o termo “união civil”
apenas para as “uniões estáveis”, as quais possuem tratamento legal um pouco
diferenciado do casamento, não há divergência jurídica com o regime
matrimonial. O ato, portanto, a ser reconhecido neste território soberano, é o
casamento do requerente, cujo debate é imperioso de ser feito através de uma
abordagem não exclusivamente jurídica, mas também social, psicológica e
histórica.
A
família não é apenas um instituto social, mas também jurídico, tanto que tem
proteção especial iniciada com a Carta Magna e decorrente na legislação
infraconstitucional. Em análise do ordenamento jurídico, extrai-se que tanto o
constituinte como o legislador ordinário buscaram dar guarida à entidade
familiar através da formação de um escudo dos laços de afetividade, elos que
geram, assim, consequentes direitos e deveres entre os integrantes da célula
social.
A
partir desse pressuposto, demonstra-se que o Direito de Família, ao contrário
dos demais ramos do direito civil, ultrapassa o tratamento patrimonial,
porquanto blinda os vínculos familiares, no intuito de respeitar o preceito
constitucional máximo que irradia todos os demais direitos fundamentais do
indivíduo: a dignidade da pessoa humana. Portanto, o enfoque da proteção
constitucional e legal tem como base a relação pessoal, sentimental,
psicológica, social e afetiva, muito além da tradicional relação puramente
biológica antes preservada nas Leis Fundamentais e legislações
infraconstitucionais anteriores. Com o advento do recente Código Civil, em
2002, essa nova visão de família foi apenas ratificada e ampliada.
A
concepção de família unida pelo afeto permitiu o reconhecimento dessas diversas
novas famílias que hoje circulam na contemporaneidade: uniões estáveis,
monoparentais, avoengas e – como no caso em tela – as construídas a partir de
casais homossexuais, hoje definidas pela doutrina e jurisprudência como
homoafetivas, termo cunhado e defendido por Maria Berenice Dias, expoente
notável na literatura e na produção jurisdicional quando desenvolvia a
atividade da magistratura junto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Com
efeito, nota-se que, ao contrário das famílias anteriormente referidas, o
legislador não cuidou em dar tratamento especial às relações homoafetivas.
Tanto a Constituição Federal quanto o Código Civil hodierno expõem em seus
textos as alcunhas de “homem e mulher” quando abordam o casamento e a união
estável. Muito embora haja textualmente uma diferenciação, tal fato não implica
a atribuição de direitos aos casais homoafetivos, eis que o ordenamento
jurídico não é apenas cunhado por letras, mas sobretudo por normas
principiológicas e fatores sociais, o que exige do intérprete da lei não uma
abordagem literal, mas também uma leitura teleológica e de acordo com todos os
preceitos relacionados à dignidade.
Seguindo
a linha de se falar em dignidade, mister que seja compreendido o conceito
histórico da Constituição Federal. A atual Carta Magna é fruto de processo
social objetivando a isonomia de direito, em um combate com as diversos
panoramas discriminatórios havidos nos anos deste país. Vale lembrar que a
história brasileira é marcada por casos de opressão de minorias étnicas,
escravidão de povos, marginalização de casais formados em casamentos que à
época eram indissolúveis, destrato em relação a filhos adotados ou tidos fora
do matrimônio, a ineficiência da tutela jurisdicional no combate a violência
doméstica.
José
Reinaldo de Lima Lopes leciona que a dinâmica do Direito é, sobretudo, um
combate à estigmatização desses grupos, exemplificando as vitórias do movimento
feminista:
Várias
formas de estigmatização já foram eficazmente combatidas pelo direito. Para
citar poucos exemplos, pode-se dizer que os grupos de identidade que se
formaram ao longo dos últimos séculos e conseguiram superar os estigmas sociais
por meios jurídicos foram as mulheres e, em parte, os negros, estrangeiros e os
deficientes físicos. Do ponto de vista da cultura majoritária, as formas de
interiorização desses eram respaldadas pelo direito. As mulheres não votavam,
podiam receber salários inferiores aos dos homens, em certas circunstâncias não
tinham acesso ao Judiciário sem autorização do marido e assim por diante. Foram
movimentos emancipacionistas e feministas que construíram pouco a pouco uma imagem
mais positiva e afirmativa das mulheres, “desnaturalizado” o tratamento
jurídico diferenciado, e que introduziram no direito à igualação de mulheres e
homens, que antes se concebia como impossível, dada a diferença do gênero. A
diferença é, pois, um constructo histórico; e o direito não joga papel neutro
nessa construção: ao contrário, o direito – os ordenamentos jurídicos – ajuda a
naturalizar as diferenças e as desigualdades comuns na cultura. A mudança no
direito não apenas se segue às mudanças culturais, mas ajuda a promovê-las.[2]
(grifei)
Outrossim,
inegável não dizer que a inserção da terminologia exclusivamente heteroafetiva
nos textos legais e na própria Constituição é resultado de grupos
conservadores, em grande parte atrelados às instituições religiosas. Em que
pese legítimo e livre o exercício de suas convicções políticas e teológicas,
respeito igual merece ser dado àqueles que não compartilham com a mesma visão
do mundo. Se há liberdade de escolha de credo, idêntica liberdade é conferida à
formação das relações afetivas. Ademais, nossa atual forma de Estado preserva a
laicidade, separando-o de qualquer religião, ainda mais nesse país, em que há
um incontável número de crenças.
Os
mesmos motivos anteriormente delineados explicam o porquê da omissão
legislativa quanto às relações homoafetivas. A já mencionada Maria Berenice
Dias esclarece que isso não significa a omissão do direito, posto que o
reconhecimento dessas uniões é pautado nas três gerações de direitos
fundamentais descritos e implícitos na Carta Magna. Nas suas palavras:
Mesmo
que o próprio desdobramento dos direitos em um grande número de gerações possa
ensejar algum questionamento, não se pode deixar de reconhecer que a garantia
do livre exercício da sexualidade merece integrar as três primeiras gerações, porque está relacionada com os
postulados fundamentais da liberdade individual, da igualdade social e da
solidariedade humana. Nesse campo, sobressaem as relações homossexuais,
crivadas sob preconceitos que tentam excluí-las do mundo do Direito. Mas, à
intolerância social, deve-se contrapor a higidez dos conceitos jurídicos. Além
de estarem amparadas pelo princípio fundamental da isonomia, cujo corolário é a
proibição das discriminações injustas, imperiosa sua inclusão no rol de direitos
humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao mesmo tempo
individual, categorial e difuso. Também se albergam as relações homossexuais
sob o teto da liberdade de expressão, como garantia do exercício da liberdade
individual, cabendo incluí-las, da mesma forma, entre os direitos de
personalidade, precipuamente no que diz com a identidade pessoal e a
integridade física e psíquica. Acresce ainda visualizar a segurança da
inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que é a base jurídica para a
construção do direito à orientação sexual, com direito personalíssimo, atributo
inerente e inegável da pessoa humana.[3]
Diante disto, fica cristalino que o não reconhecimento desta união
obtida pelas partes em território estrangeiro estaria contrariando todos os
princípios estabelecidos em nosso país no que tange ao combate ao preconceito
diante da opção sexual adquirida por cada cidadão e, principalmente, a questão
das inúmeras agressões praticadas por pessoas, hoje identificadas como “homofóbicas”.
Reconhecer tal situação, trata-se de mero ato de formalizar o que de fato já
existe, pois o casal homoafetivo já vive e se comporta como duas pessoas
casadas, que além do afeto e da harmonia, acabam construindo um lar e vivendo
toda a rotina que um casal heteroafetivo vivencia, e muitas vezes fazendo valer
de forma mais significativa as questões que envolvem um casamento.
Ressalta-se que aqueles que optam pelas relações homoafetivas
possuem os mesmos deveres e obrigações de qualquer cidadão: pagam tributos,
prestam concurso público, são condenados ao cometerem algum ilícito penal,
votam obrigatoriamente em seus representantes políticos etc. Se esse grupo é
considerado cidadão para o cumprimento de obrigações, igualmente assim deve ser
considerado para o reconhecimento de seus direitos. Tal posicionamento fica
evidente quanto se leva em conta a questão previdenciária:
O
mesmo ocorre em relação ao princípio da solidariedade, porque ao trabalhador
que contribui para a construção de um sistema de seguridade observando o
princípio de solidariedade social previsto no artigo 3º, inciso I, da
Constituição Federal, é mais que legítima sua expectativa de que, diante de
adversidades, seja garantida a manutenção de seu padrão de vida e das pessoas.
Porque, se o princípio da solidariedade dá a idéia de que todos têm direitos e
deveres, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, significa
que, se os companheiros das relações homoafetivas têm os mesmos deveres com a
Previdência Social, devem também ter os mesmos direitos, independentemente da
opção sexual, porque atualmente muitos destes brasileiros estão tendo de
recorrer ao judiciário para terem seus direitos assegurados.[4]
Seguindo essa trilha de pensamento, duas importantes vitórias aos
casais homoafetivos foram alcançadas no âmbito do Poder Judiciário. A primeira,
e mais importante delas, refere-se ao julgamento de duas ações frente o Supremo
Tribunal Federal, a ADI nº 4.277 e a ADPF nº 132, contendas que acarretaram o
reconhecimento da união civil de pessoas do mesmos sexo. A segunda, por sua
vez, deu-se na seara do Superior Tribunal de Justiça, colegiado que considerou
como válido o casamento havido entre duas mulheres gaúchas. Estas decisões nada
podem ser consideradas como supressão da omissão legislativa – necessária para
dirimir qualquer dúvida quanto às relações homoafetivas –, mas a concretização
dos direitos de igualdade e liberdade já consagrados no texto constitucional.
Gabriela Soares Balestro diz que:
Assim,
diante do reconhecimento constitucional da homoafetividade pelo Supremo
Tribunal Federal, as relações homoafetivas foram inseridas no conceito de
entidade familiar, havendo, portanto, a possibilidade da conversão das uniões
civis entre pessoas do mesmo sexo em casamento, tendo em vista que, se os
mesmos direitos civis e efeitos patrimoniais e sucessórios que regulamentam as
uniões estáveis heteroafetivas, com o atual entendimento do STF, devem ser
estendidos aos casais homoafetivos, o casamento, sendo instituo de direito
civil também é juridicamente possível.[5]
E
continua a autora:
A lei
deve ser interpretada em uma perspectiva geral e adequada à Constituição
Federal, reconhecendo que o outro é portador dos mesmos direitos, tendo em
vista que as relações homoafetivas devem ter igual tratamento e proteção legal
que as relações heteroafetivas em prol do respeito ao princípio da igualdade e
à dignidade da pessoa humana, sendo o casamento um direito civil fundamental de
todo ser humano.[6]
É necessário perceber que o mundo está se desenvolvendo a cada
dia, inclusive nesta questão homoafetiva, pois é sabido que tais relações já
existem bem antes do que o senso comum imagina. Contudo, o preconceito também
acabou por acompanhar essas pessoas, as quais, antigamente, não possuíam
coragem de expor à sociedade sua opção sexual.
Assim, é preciso que essa
discriminação, que há tantos anos está presente na mente das muitas pessoas,
seja definitivamente quebrada, a fim de que todos tenham o direito de expressar
suas opções sexuais, fazendo valer os princípios e garantias da pessoa humana”.
Em arremate, consigno que o pedido apresentado pelo
requerente encontra amparo no artigo 1544 do CC, assim redigido:
CC – Art. 1544 – O casamento de
brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os
cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar
da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo
domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem
a residir.
Também está previsto nos artigos 47 a 50 da Consolidação
Normativa Notarial e Registral, instituída pelo Provimento nº 32/2006-CGJ, in
verbis:
Art. 47 – Antes de
proceder às trasladações, os Oficiais de Registro Civil submeterão as
certidões, mediante petição assinada pela parte
interessada, à apreciação do representante do Ministério Público, fazendo- se
posterior conclusão ao Juiz Diretor do Foro ou ao Juiz da Vara dos Registros
Públicos, onde houver.
Art.
48 – Tratando-se de trasladação de assento de nascimento, será provada a
nacionalidade brasileira de, pelo menos, um dos pais do registrado; se for de
assento de casamento, provar-se-á a nacionalidade brasileira de pelo menos um
dos cônjuges; cuidando-se de assento de óbito, juntar-se-á comprovante de
nacionalidade brasileira da pessoa falecida.
Art.
49 – O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as
respectivas autoridades ou Cônsules brasileiros, deverá ser registrado em 180
dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do
respectivo domicílio ou, em sua falta, no 1º Ofício da capital do Estado em que
passarem a residir.
Art.
50 – Uma vez devidamente documentados e autorizados pelo Juiz competente,
poderão ser acrescidos, ao se proceder às trasladações, dados necessários à
melhor identificação das partes e omitidos nas certidões de origem, como
filiação, data de nascimento, naturalidade, nome usado pelo cônjuge após o
casamento, ou, ainda, correções de erros evidentes.
Parágrafo
único – O Juiz competente poderá autorizar a constar no termo o regime de bens
adotado pelos cônjuges, quando não constar da certidão a ser trasladada.
A situação concreta trazida a julgamento encontra, pois,
perfeita subsunção com o quadro emergente do requerimento inicial. O pedido
apresentado por Emerson foi correta e regularmente endereçado ao Oficial do
Registro das Pessoas Naturais de Lajeado, a quem cabia, por dever funcional,
antes de proceder ao traslado da certidão, encaminhar o pleito ao Ministério
Público e ao Juiz Diretor do Foro.
A petição está aparelhada com os documentos imprescindíveis
ao deslinde do feito, eis que trazido à colação: certidão de casamento civil,
referendada pela autoridade consular brasileira; tradução elaborada por
tradutora juramentada; cópia do RG do requerente; cópia do passaporte do
companheiro, em que demonstrado o uso do nome de casado “dos Santos”; bem assim
comprovante de residência no Brasil e comprovante de que retorno ao País
ocorreu em 15/8/2011, tendo sido apresentado o requerimento de forma
tempestiva.
De outra
banda, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, que
julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4277 e a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, reconhecendo a união estável
para casais do mesmo sexo, inexistem óbices ao deferimento do postulado.
A partir
dos referidos julgamentos, com efeito vinculante, interpreta-se o artigo 1.723
do Código Civil de forma a não colidir com o artigo 3º, inciso IV, da Constituição
Federal.
Ou seja,
ao se aplicar o referido artigo 1.723, deve-se interpretá-lo de forma a não
criar qualquer discriminação em virtude da opção sexual, excluindo-se “qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de
"família". Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras
e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.[7]
Digno de
destaque, por fim, que embora não se trate aqui de reconhecer união estável
homoafetiva, mas sim de reconhecer registralmente o casamento celebrado entre o
postulante e Peter, a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça há muito já
vinha admitindo o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, conforme se
extrai das ementas abaixo transcritas:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. Há possibilidade
jurídica na ação declaratória de união estável mantida entre pessoas do mesmo
sexo, uma vez preenchidos os demais requisitos exigidos em lei.
Precedentes desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça. Configurada a
continuidade e a publicidade da união pelas partes, com o intuito de constituir
família, é de ser reconhecida a união estável homoafetiva. Sentença de
procedência confirmada. NEGARAM PROVIMENTO Á APELAÇÃO. (Apelação Cível Nº
70038506176, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André
Luiz Planella Villarinho, Julgado em 19/10/2011)
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO
ESTÁVEL HOMOAFETIVA. POSSIBILIDADE. POSICIONAMENTO CONSAGRADO NO JULGAMENTO DA
ADIN Nº 4277 E DA ADPF Nº 132. DIREITOS SUCESSÓRIOS. PREQUESTIONAMENTO. 1.
Tendo em vista o julgamento da ADIn nº 4277 e da ADPF nº 132, resta superada a
compreensão de que se revela juridicamente impossível o reconhecimento de união
estável, em se tratando de duas pessoas do mesmo sexo. 2. Na espécie, o
conjunto probatório é robusto no sentido da caracterização do relacionamento
estável, nos moldes do art. 1.723 do CC, razão por que deve ser emprestado à
relação havida entre a recorrente e a companheira falecida tratamento
equivalente ao que a lei confere à união estável havida entre homem e mulher,
inclusive no que se refere aos direitos sucessórios sobre as duas casas
construídas com esforço comum, o que foi reconhecido judicialmente, na forma do
art. 1.790, III, do CC (pois concorre a insurgente com a genitora da falecida).
3. O magistrado não está obrigado a se manifestar sobre todos os dispositivos
legais invocados pelas partes, necessitando, apenas, indicar o suporte jurídico
no qual embasa seu juízo de valor, entendendo ter dado à matéria à correta
interpretação jurídica. APELO PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70045194677, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl,
Julgado em 22/03/2012)
A
procedência do pedido apresentado, é, pois, medida que se impõe.
Ao exposto, julgo PROCEDENTE a
pretensão do requerente E.A.F.S. para o fim de reconhecer, registralmente,
o casamento celebrado entre o postulante e P.J.A., de nacionalidade britânica, que passará a se chamar
P.J.A.S.,
devendo constar no assento de casamento que o regime matrimonial será o da
comunhão parcial de bens.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Cumpra-se.
Lajeado, 31 de
maio de 2012.
Juiz
de Direito
[1] DIAS, Tatiane. Como
realizar um casamento homossexual no Reino Unido. SairdoBrasil.com, 23 nov.
2009. Disponível em: Acesso
em: 04 nov. 2011.
[2] LOPES, José Reinaldo
de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. In: GOLIN, Célio;
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; RIOS, Roger Raupp (ORG). Homossexuais e Direitos Sexuais: reflexões a partir da decisão do STF.
Porto Alegre: Sulinas, 2011, 31.
[3] DIAS, Maria
Berenice. União Homossexual: o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2000, p. 63-64.
[4] KOLMANN, Rozeni. Relações homoafetivas e previdência social: uma abordagem à luz de
princípios constitucionais. Monografia (Curso de Graduação em Direito).
Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, 2006, p. 84-85.
[5] BALESTRO, Gabriela
Soares. O Casamento como um instituto de Direito Civil: a Homoafetividade. In: Revista Brasileiro de Direito das Sucessões,
Porto Alegre, n. 22, p. 30-31, jun/jul
2011.
[6] Ibidem, 40.
[7] ADI
4277 e ADPF 132, relatoria do Ministro Ayres Britto, 05/05/2011.
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